Eleição
No fundo, todo radical quer o retorno da imobilidade aristocrática,
escondida nas nomenclaturas
Sou fascinado pelo “período eleitoral”. Mudar é complicado em qualquer
lugar, mas é um drama nas sociedades que combinaram escravidão africana com uma
aristocracia branca eurocentrada e católica no campo da política e dos hábitos
sociais. No Brasil, a hierarquia das boas maneiras impediu o civismo e derivou
num esquerdismo salvacionista, curiosamente cristão.
Esse cenário talvez explique a ideia de que a política é o lugar do
vale-tudo — exceto perder ou “cair”. Como se o poder fosse uma montanha onde
sobem os eleitos, quando o que precisamos é de um estado a serviço da
sociedade. É poder demandar mais responsabilidade e transparência do que
arrogância e a familiar má-fé, cuja santidade não conhece erros.
Como instituir uma sociedade igualitária tendo como ponto de partida o
legado desumano de uma escravidão abençoada? Dessa matriz vem a confusão entre
o ator-candidato e o cargo público. A confusão entre pessoa e papel é o
mecanismo fundamental tanto da dominação patrimonialista-familística (a lei é
relativa aos amigos) quando da carismática (X ou Y é santo e talhado para o
cargo), dificultando a dominação burocrática (a regra da lei para todos)
porque, sem regras fixas, as instituições não funcionam e estados-nacionais não
conseguem prover educação, saúde e segurança aos seus cidadãos.
Não é apenas uma questão de programa, mas de como administrar. De como
passar de “governo” (que pode esbanjar e roubar) a gerenciamento público (que
tem o dever de ser eficiente). Mas sem honrar as demandas éticas dos cargos
públicos que não pertencem nem ao ator nem ao seu partido, jamais iremos
controlar os aparelhamentos e as impunidades com as quais estamos entalados.
O jogo entre pessoas e papéis é a base da eleição como o ritual político
mais importante nas democracias liberais e competitivas — esses sistemas
abertos até mesmo a candidatos cuja proposta é liquidá-los. No fundo, todo
radical quer o retorno da imobilidade aristocrática, escondida nas
nomenclaturas. Esse é o paradoxo político do radicalismo moderno. Ele inventou
a liberdade individual que empreende, mas rejeita a sua criatividade sem
controle. E odeia discipliná-la por meio de consenso.
Prefere a velha imobilidade social do nascer e morrer no mesmo segmento
social. Essa norma tradicional que a eleição transforma por meio do voto, o
qual cola candidatos a cargos públicos. A eleição “legitima” e “oficializa” os
candidatos, mas isso é feito no ritual do voto. O humilde voto que ajusta a
realidade limitada e transitória do ator às responsabilidades ideais e
permanentes do papel.
Quando os eleitos tornam-se donos de cargos públicos, acontece o
apadrinhamento, a negação do mérito e a corrupção — essas perversões da
democracia. O papel canibalizado pelo ator ou pelo partido leva ao fim das
instituições e das normas burocráticas que deveriam ser — como viu Weber com
exagero prussiano — autônomas e invariantes, mas que podem mudar por consenso
democrático.
Uma instância trágica da apropriação do papel pela pessoa foi o caso do
nacional-socialismo alemão. No Brasil, isso se exprime no ditado popular “Quem
foi rei nunca perde a majestade!” e tem ocorrido no chamado lulopetismo. O
termo traduz um improvável casamento teórico de carisma e personalismo com
burocratismo impessoal e ideologia. Mas, como as sociedades não estudam
sociologia, a conjunção funcionou e, hoje, ela parece retornar com grande
apelo. Afinal, como disse Albert Hirschman, a nossa América Latina tem um
enorme e descuidado amor pelas experiências políticas.
Termino essa análise estrutural da conjuntura, com um lembrete sobre o
momento eleitoral. Marina Silva representa a proposta de juntar carisma com
ideologia na base de acertos pessoais afiançados por uma tragédia ao lado de
uma biografia impecável. Seu programa financeiro é muito próximo ao de Aécio
Neves. A diferença é que Aécio não tem a aura de santidade e carrega os
compromissos institucionais do PSDB: a obrigação de governar administrando. Não
se pode esquecer que foi essa atitude que deu ao Brasil o respeito e a
estabilidade monetária. Estabilidade que, no plano do cidadão comum, permitiu
enxergar o futuro, distinguir limites e compreender o quanto o governo rouba e
desperdiça.
No seu lado direito, Aécio Neves tem a figura da presidente. Nela há um
poderoso enraizamento ideológico atrelado, contudo, a uma figura sem uma gota
sequer de carisma ou até mesmo de simpatia. Ademais, o Brasil de Dilma, a
gerentona inventada por Lula, mostra que suas fórmulas trazem anticrescimento e
um fisiologismo estrutural cujo resultado é uma série de escândalos. Voto no
Aécio. Mas estou convencido que ele tem que relativizar a crítica programática
para entrar no terreno de uma entrega mais clara ao eleitor. A receita
soluciona, o servir exige a ênfase na administração pública com e para o
público. A ser realizada com rotineira serenidade e sem o risco das acrobacias
carismáticas.
Roberto DaMatta é antropólogo
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/eleicao-13810207#ixzz3Cj7WkDPj
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