Até o gosto do peixe aqui é diferente, ainda tá bom. Aqui podemos comer peixe sem preocupação. Lá na minha terra não tem mais como comer, não, - alertou a liderança indígena
Juliana Radler, do ISA 13/05/2022 às 21:15. Atualizado em 13/05/2022 às 21:15
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Alessandra explica as agressões sofridas no seu território durante oficina em São Gabriel da Cachoeira (Juliana Radler/ISA) |
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM) -
Que não aconteça aqui nesse rio (Negro) tão bonito, limpo e vivo o que está acontecendo com o Tapajós, que era lindo, verdinho, e agora é barrento e contaminado pelo mercúrio
Ganhadora do prêmio de Direitos Humanos Robert F. Kennedy, em 2020, pela defesa do seu território, no Pará, frente às ameaças do garimpo ilegal, madeireiros e projetos do agronegócio, Alessandra participou da I Oficina Participativa de Formação Política promovida pelo Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), em São Gabriel da Cachoeira, nos dias 27 e 28 de abril, em parceria com a Rede Wayuri de Comunicação Indígena e com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).Alessandra esteve em Brasília entre 4 e 14 de abril participando do Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização indígena do planeta, para alertar contra a liberação de mineração em terra indígena que vem sendo puxada pelo governo por meio do Projeto de lei (PL) 191. No dia 19 de abril, Korap foi convidada pela comunicadora Fátima Bernardes, da TV Globo, a expor ao grande público a defesa que vem fazendo do seu território Munduruku como presidente da Associação Indígena Pariri e vice coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), que reúne 57 etnias.
Em meio a essa
agenda cheia, ameaças de perseguição e morte, Alessandra – que atualmente
estuda Direito na UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará), em Santarém,
veio ao Rio Negro dar uma aula de defesa territorial, comunicação, persistência
e coragem frente às violências e invasões sofridas pelos Munduruku na terra
indígena Sawré Muybu, no Pará.
Vocês acham que eu queria estar aqui? Eu não queria ficar viajando. Eu queria ficar com meus filhos, cuidar da roça, banhar no rio, brincar, pescar. Não posso mais fazer nada disso. Isso dói. Mas, eu não vou desistir, eu vou estudar e lutar pelo meu povo contra o retrocesso, não posso me calar vendo o homem branco destruir a terra dos meus filhos. Ver outros povos sofrendo também, crianças sendo abusadas, como as Yanomami. Defender o território é defender a vidafrisou durante debate com os diretores da Foirn, Janete Alves, do povo Desana, e Nildo Fontes, Tukano, na mesa sobre ameaças aos povos indígenas no Brasil atual.
Em 2018 começou a entrada de invasores, em 2019 era máquina de todos os lados, os caciques saíram das aldeias, começaram a aliciar muitas lideranças e o nosso território começou a ser violado. Várias carretas, o rio sendo ocupado pelas balsas. Nossos jovens entrando no mundo da bebida, chegando em casa drogados e as moças se prostituindolembrou Korap, dizendo que aí os caciques pediram a ela que denunciasse e lutasse pelo povo.
Ativista explica as
agressões sofridas no seu território durante oficina no Amazonas (Juliana
Radler/ISA)
O avanço do garimpo
ilegal que despejou mais de 100 toneladas de mercúrio nas águas amazônicas em
2019 e 2020 também ameaça a bacia hidrográfica do Rio Negro, a maior bacia de
águas pretas e mais extensa área úmida protegida do planeta. Ocorrências de
garimpo ilegal cresceram nos últimos dois anos e vêm sendo denunciadas pela
sociedade civil. Com a falta de fiscalização territorial dos órgãos
competentes, os próprios indígenas vêm tendo que se expor em defesa do seu
território, trazendo insegurança e ameaças às suas vidas, como foi colocado
pelo presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré, durante a oficina.
Contaminando os maiores tucunarés do mundo
Projetos
sustentáveis como o de pesca esportiva em terra indígena, iniciativa que gerou
o recorde no Guineess book de maior tucunaré pescado e atrai centenas de
turistas do Brasil e do mundo, estão ameaçados por conta da ação ilegal de
garimpeiros e narcotraficantes, que agem associados e invadem as terras
indígenas no rio Negro. Além da destruição do meio ambiente e da fauna, a
bandidagem leva o medo, ameaças e violência às comunidades indígenas em regiões
remotas e até então protegidas da Amazônia, diante da inércia e negligência do
Estado brasileiro.
A garimpagem é um problema muito sério na Amazônia que não pode ser deixado de lado. A gente não quer isso aqui. A gente aqui usufrui das nossas frutas, da nossa caça, da nossa pesca, ainda temos nossos rios limpos. Por isso, precisamos seguir nossa luta política e no fortalecimento das nossas lideranças para a melhoria e proteção das terras indígenas demarcadas do rio Negroressaltou a diretora e comunicadora Janete Alves, do povo Desana, que no fim deste mês irá a Haia, Holanda, receber o prêmio Estado de Direito do projeto Justiça Global, pelos trabalhos realizados pela Rede Wayuri de comunicadores indígenas no combate as fake news e defesa dos direitos indígenas.
Comunicadores
indígenas do Rio Negro premiados pelo combate à desinformação (Juliana
Radler/ISA)
Assista aqui no
canal da Foirn a íntegra da entrevista gravada pela Rede Wayuri no ISA em São
Gabriel da Cachoeira com a liderança Alessandra Munduruku.
Nos tempos que a Funai existia
Também somaram ao encontro dois ex-presidentes da Funai de tempos
passados quando a Fundação Nacional do Índio ainda defendia os direitos
indígenas: Márcio Santilli e João Pedro Gonçalves da Costa. O primeiro foi
também deputado federal (1983-1987) e é sócio fundador do ISA, tendo
participado como figura central na articulação pelos artigos 231 e 232 da
Constituição Federal que colocaram os direitos indígenas na Carta Magna.
Santilli compartilhou com as lideranças indígenas as histórias de bastidores
da Constituinte, algumas vividas ao lado de Mário Juruna (primeiro deputado
federal indígena) e Ailton Krenak, na ocasião presidente da UNI (União das
Nações Indígenas), cujo discurso histórico no dia 4 setembro de 1987 reverteu a
conjuntura política anti-indígena naquela legislatura do Congresso Nacional,
sendo decisivo para a aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal
de 1988 pelos parlamentares constituintes.
A Constituição é fruto de uma briga enorme, resultado de uma negociação dura que garantiu aos índios os seus territórios e a defesa dos seus direitos. Aquela coisa de tratar os índios e os seus direitos como algo provisório acabou a partir da Constituição de 88. Isso foi a grande vitória, lembrou Santilli.
João Pedro, também ex-senador pelo Amazonas (2007-2011), pôde dividir sua experiência na vida pública e no poder Legislativo, neste momento no qual esperamos o maior número de candidaturas indígenas já lançada na história do Brasil. No último ATL várias mobilizações de convocação para uma bancada do cocar foram feitas, com grande disposição das mulheres indígenas em “aldearem a política” de Brasília para derrotar o lobby da mineração e a bancada ruralista. Atualmente, só existe uma parlamentar indígena, Joênia Wapichana, deputada federal por Roraima (Rede).
Cerca de 50 lideranças indígenas participaram da I Oficina Participativa de Formação Política (Juliana Radler/ISA)
Formação política que motiva a estudar, pensar e refletir deve ser permanente. É preciso que a sociedade esteja organizada, a juventude, as mulheres. Por isso, é importante essa iniciativa de vocês. A Foirn, os rios, as aldeias, vocês precisam estar com o pensamento organizado para nunca aceitar a falta de liberdade e a falta de democracia
enfatizou João Pedro, que está lançando essa semana em Manaus o livro “Nossas Utopias – A Esquerda de Manaus em 13 Atos”, pela editora Valer, na banca do Largo (em frente ao Teatro Amazonas).
Recordar é viver
Recordar, do latim
re-cordis, significa voltar a passar pelo coração. A origem da palavra evoca o sentimento
do encontro de João Pedro com Alessandra nesta oficina no rio Negro, ao
lembrarem que foi em sua gestão na Funai, no dia 19 de abril de 2016, que foi
publicado o relatório no Diário Oficial da União que delimitava a terra
indígena Sawré Muybu, dando continuidade ao processo de demarcação do
território de 173 mil hectares.
Na ocasião, a
região sofria a pressão do setor energético para a construção da usina
hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que previa inundar boa parte do território
ocupado historicamente pelos Munduruku, inclusive alagando áreas sagradas. Com
a divulgação do estudo da Funai, a construção da obra ficou mais difícil.
A oficina de
formação política contou com a participação de cerca de 50 lideranças indígenas
ligadas à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), incluindo
jovens e mulheres, com intuito de debater sobre democracia, sobre os 3 Poderes
do Estado, assim como fazer uma análise conjuntural sobre as principais ameaças
aos direitos indígenas e à jovem democracia brasileira, com foco especial no
debate eleitoral, fake news e a importância da imprensa livre.
Na conclusão do evento, os participantes fizeram uma exposição sobre suas reflexões em relação à democracia, à proteção de seus direitos e territórios, assim como sobre o combate às notícias falsas e desinformação. “Informar, consultar, dialogar e só assim decidir. Isso é democracia. Uma liderança não pode decidir sozinha. E temos que colocar em prática os nossos protocolos de consulta”, concluiu Max Tukano, liderança e ex-presidente da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), durante as apresentações finais.
Max Tukano defendeu
protocolos de consulta e diálogo com os povos indígenas (Juliana Radler/ISA)
A Rede Wayuri
participou da formação e fez a cobertura da oficina. Quem quiser saber um pouco
mais sobre a atividade pode escutar o podcast Wayuri dessa semana pelo Spotify
da rede, eleita como um dos 30 herois globais da informação mundial pelos
Repórteres Sem Fronteiras. Todo o evento foi gravado pela Rede Wayuri para
posterior circulação para as comunidades e transcrição dos debates.
Juliana Radler,
articuladora de políticas socioambientais do Programa Rio Negro e organizadora
da oficina.
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